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A abertura do romance O Processo, de Kafka, é, talvez, a mais famosa de toda literatura, que dá início a um processo de terror. Quem bateu na porta, naquela manhã, poderia ser da Gestapo, da Polícia Federal ou da CIA. Mas, também, poderia ser algo banal: as pilhas de impostos para pagar, a fila de espera no consulado dos EUA para retirar o visto, a espera nos hospitais, etc. Isso tudo caracteriza o século XX e K. nos deu a senha. Nosso mundo de terror e burocracia pode ser visto como sofismo dos burocratas de meio período. K. é profético.
Em seu mais famoso romance, o protagonista Joseph K. foi acusado e executado sem nem mesmo ter a culpa formada ou a identidade criminal verificada. A fórmula de Feuerbach é simplesmente inexistente: não se sabe qual o crime. Joseph K. também não pôde ter acesso aos autos de acusação. O advogado faz parte da engrenagem do sistema, simplesmente existindo. As audiências eram marcadas em domingos (para não atrapalhar a vida do protagonista). Não se sabe quem é o juiz ou quem de fato julgará, isso porque, na lógica do medo, o poder é diluído (Foucault), não se sabendo a autoridade coatora. Constrangedor, árido, real, secreto e privado são alguns adjetivos passíveis ao romance. Sua identidade central, entretanto, nos revela que o processo kafkiano é um mecanismo unilateral, só existindo para acusar.
Nessa perspectiva podemos recepcionar o processo de seleção da população criminosa com olhos na teoria do labeling approach e sua negação pela igualdade. Sabemos que os mecanismos reguladores da seleção criminosa são complexos. Macrossociologicamente, há uma interação de seleções de poder entre grupos sociais que dão conta a uma desigual distribuição de bens e de oportunidades entre indivíduos.
Por isso mesmo, Sack critica a definição “legal” de criminalidade (ou seja, um ato que viola uma norma penal). Sack diz que isso é uma ficção porque a maioria dos membros da sociedade viola a norma penal. Portanto, a criminalidade, como realidade social, não é uma entidade pré-constituída em relação à atividade dos juízes, mas uma qualidade atribuída por estes últimos a determinados indivíduos. A criminalidade é uma realidade construída socialmente com definições e interações. Daí o Teorema de Thomas, perfeitamente aplicável à situação de Joseph K.:
“se se definem situações como reais, elas são reais nas suas conseqüências.”
O romance nos impele a questionamentos inquisitivos como "que lei é essa?", "qual o crime cometido?", "qual a culpa?". Todavia, ao final, percebemos que essas são perguntas ridicularizadas. Mas, ao mesmo tempo, deixa claro, que se não conhecemos a lei, somos culpados. Estar vivo é estar em provação que não podemos entender completamente.
Em 1914, escreveu a parábola “Diante da Lei” que, posteriormente, foi incorporado ao romance O Processo. A semelhança com o Livro de Jô é paradigmática: o resultado já é sabido por todos, o rito já está determinado, não há esperança. Joseph K. chega mesmo a perguntar, certa feita, aos policiais:
"Em que teatro estão representando?".
Não muito distante do que Camile Paglia concluiu:
"A sociedade é o lugar das máscaras, um teatro ritual".
Desvenda-se que o princípio reitor de O Processo é que todos são inocentes até o instante que sejam acusados. Há um dirigismo à condenação, apesar dos ritos burocráticos disfarçando a hipocrisia jurisdicional. As descrições são enfadonhas, as estruturas do tribunal formam um labirinto, os juízes são invisíveis e inabordáveis.
"Quando a corte acusa alguém, a Corte não pode ser arredada dessa convicção."
Expressou-se, assim, o pintor Titorelli. Ou seja, quando se acusa, é porque a culpa realmente existe... É inútil e impossível resistir.
É certo que o romance permite sacudir a ideologia penal tradicional. Coloca-se em relevo o princípio da igualdade, pois a criminalidade seria um comportamento isolado de Joseph K. sendo atribuído a ele por parte daqueles que detêm o poder de aplicar e criar a lei penal. Também encontram-se em jogo princípios da legitimidade, interesse social e delito natural.
Há ausências de definições, não se explicando o conteúdo do crime, apenas apresenta traços do que diferencia o comportamento criminoso dos outros comportamentos. Também é evidente as cerimônias de degradação em todos os aposentos em que K. é acusado ou tenta se defender.
Mesmo assim, Joseph K. se predispõe a enfrentar o sistema. Autodefende-se clamando inocência, mas investem, contra ele, “técnicas de neutralização ao inverso” (Sykes e Matza):
"é assim mesmo que os culpados tendem a falar".
Um dos guardas interpela-o:
"Admite não conhecer a lei, mas declara-se inocente...".
Joseph K. mal sabe que seu papel é essencial no processo porque ele atua como o culpado. Só compreende isso ao final da narrativa. Descobre-se funcional ao sistema como culpado. Assim como Durkheim, conclui que o crime é necessário, pois
"se liga às condições fundamentais de toda a vida social e, por isso mesmo, tem sua utilidade".
Conclui-se também que o acusado-culpado é necessário. Joseph K. não era um elemento estranho e inassimilável dentro do processo. Ele era funcional, necessário e, o pior, gradativamente passa a incorporar esse papel agindo como se culpado fosse: veste-se às pressas, exibe documentos, obedece constrangido, responde quando deveria perguntar... Depois, procura fazer uma petição de defesa e conclui que uma petição daquela seria totalmente impossível porque para enfrentar uma acusação desconhecida seria preciso rememorar a sua vida inteira até nos menores acidentes e ações, formulados com clareza e sobre todos os ângulos... Tragicamente descobre que inútil não é a espera, mas a ação.
Isso nos leva a concluir que todos os fatos d´O Processo, são, de fato, imagens paralisadas. Na verdade, o ponteiro dos segundos do desespero corre incessantemente e em alta velocidade, mas o relógio tem o ponteiro dos minutos e das horas quebrados (Güter). O prosseguimento significa em pensar e repensar as mil possibilidades que, como um feixe de luz, irradiam daquele ponto dos acontecimentos. É dizer, só existe um acontecimento em todo o processo, a história gira em círculos, há uma idéia fixa, como num sonho, não há avanços, por isso uma angústia em sua leitura. Esse caráter cíclico não é uma falha, é, antes proposital: os conceitos “progresso” ou “desenvolvimento” ou “processo” são abandonados. É a maldição da vida a cada dia renovada, embora fadada à repetição. Pelo mais sombrio de todos os paradoxos de Kafka, as manifestações dessa luta são inevitavelmente destrutivas, sobretudo autodestrutivas. Quanto mais tenta se defender, mais funda a acusação e mais se entende culpado.
Eis aqui, portanto, um motivo que contraria rigorosamente o outro. A punição (que se antecipa à culpa) torna-se testemunho da culpa. “Eu não seria punido” – parece dizer – “se não fosse culpado”. E procura, de fato, “sujeitar-se” a essa culpa. É extremamente significativo que o K. d’O Processo – embora tenha sido liberado pelos funcionários em exercício de sua função, na cena introdutória – corra atrás deles (Güter).
Essa característica não é díspar à realidade. Escolhido uma vez como culpado, escolhido para sempre. Até a derradeira sentença fatal. O sistema penal não se destina a punir todas as pessoas que cometem crimes e nem poderia fazê-lo, sob pena de processar a todos nós. Mas, faz-se necessário culpados. E esses culpados serão culpados eternamente. É como diz Carnelutti:
"O encarcerado, saído do cárcere, crê não ser mais encarcerado; mas as pessoas não. Para as pessoas ele é sempre encarcerado; quando muito se diz ex-encarcerado; nesta fórmula está a crueldade do engano. A crueldade está no pensar que, se foi, deve continuar a ser."
A atualidade Kafkiana
No dia-a-dia, é visível e análoga a situação. Hoje deparamo-nos com a cultura do direito penal do pânico. Isso correlaciona-se com O Processo na medida em que predomina sempre a pertinência dos grupos estabilizados e que massacram o que possa vir a pôr em risco a integridade de suas conquistas. O medo transforma o homem em um animal irracional e arbitrário. Há outro aspecto político: o Estado se preocupa mais com o medo, com a repressão e a violência do que com a paz, a garantia dos direitos individuais e a liberdade. Por outro lado, não nos foge à vista que sem a pena a barbárie seria o estado natural da sociedade. O problema é qual o limite entre o Estado e o indivíduo e onde o processo deve se inteirar nessa relação.
O Estado não é uma entidade superior, criadora de direitos (como queria Hegel), controlador único e normativo. O Estado é uma instituição, assim como a Cidadania, e deve se posicionar em igualdade institucional. A estrutura normativa constitucional é garantidora da atuação permanente da Cidadania na transformação ou preservação do Estado e das demais instituições. A Cidadania é também uma instituição que, para se efetivar, demanda incursões sobre as garantias e os princípios constitucionais do processo.
O Estado pós-moderno está, assim, no ordenamento jurídico, em situação isonômica com outras instituições (Habermas) e com estas se articula de modo interdependente num regime jurídico de subsidiariedade recíproca (Baracho). Desse modo, a relação entre o processo e o Estado é que aquele deve assegurar a liberdade e a igualdade do homem frente a este. Só assim assegura-se a Cidadania. Mas, em Kafka, as instâncias judiciais representam duas coisas: por um lado, os `pobres´, cuja existência torna a própria existência uma ´culpa`. Não é por acaso que os aposentos judiciais se encontram na mansarda da rua dos pobres – a bem dizer em cada casa de pobre. Mas, por outro lado, muitos membros do “mundo”, portanto, da classe dominante – e exatamente aqueles que consideram a consciência social de K. uma vergonha – mantêm-se no mais estreito contato com o tribunal.
A evolução do processo, desde Ponthier até Habermas, traz ínsitos em si paradoxos de valores e visões. Os princípios do processo penal, hoje elencados na Carta, traduzem um processo, assim denominado pós-moderno. O processo é, pois, criação constitucional com características definidas nos princípios do contraditório, ampla defesa e isonomia. São verdadeiros institutos sem os quais não se definiria o processo em parâmetros modernos de direito-garantia constitucional.
Conclusão
Ler Kafka como uma crítica é sempre uma armadilha perigosa porque nos parece que Kafka nos exige uma interpretação direta do seu texto, quase pede para ser interpretado literalmente. Quer ser raso, mas isso é um paradoxo, assim como todas as suas estórias. Nesse tipo de ironia, cada figura do livro é e não é o que poderia parecer. Podemos dizer que, em Kafka, não há sugestões, o texto é seco. Também não deseja representações. A conclusão é que não existe esperança, nem para ele, escritor, e nem para nós, leitores, e nem para seus personagens. E se interpretação pudéssemos fazer diríamos que O Processo é uma gozação fantástica. Sua narrativa é longa e bruta nos acontecimentos. O terrível vai acontecer e acontece efetivamente desde a primeira página até a última.
Todos os dias "Josés" são processados e condenados num Estado de Direito formado de burocracia e papel. Nesse Estado, muitos operadores do Direito entendem que o processo existe para condenar ou para defender a sociedade ou, pior, para se alcançar a sentença. Entretanto, a epistemologia processual e a ciência processual trazem o processo como defesa primeira do acusado. O processo só existe por causa do réu (Ferrajoli). Não existe para condenar, antes pelo contrário, existe para garantir que, se punição houver, será precedida das garantias constitucionais na sua mais ampla afeição.
Com a genialidade, Kafka conseguiu, antes mesmo de seu tempo, prever o que nos esperava. Como mesmo pontuou “Sou o fim ou começo” (Kafka, Diário IV). Sua importância é tamanha que se apoderou de uma letra do alfabeto. S não é Shakespeare, mas K é Kafka.
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quarta-feira, 12 de março de 2008
O Processo - Franz Kafka
Postado por Compartilhando Informação às 08:21
Marcadores: Kafka Franz, Livros
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2 comentários:
Eu ja li A Metamorfose,Franz Kafka e show.Ta de parabens o blog.
Obrigado pelo elogio, Metamorfose e meu livro preferido dele, mas acho o texto de O Processo melhor.
Grande abraco
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